Asfódelos III

ps: Antes de ler este post, certifique-se de que já leu Asfódelos I e Asfódelos II.


Era estranho pensar sobre o amor, estando morto e condenado eternamente ao Campo dos Asfódelos. Se ao menos eu tivesse alcançado Ísis, onde a prosperidade reina excessivamente... Mas não. Eu estava nos Asfódelos.
Era incrivelmente grande. A cada dia, chegavam centenas de novos mortos aos Asfódelos. Hades estava até irritando-se, por ter que arrumar maneiras mirabolantes de comportar todos aqueles mortos lá dentro.
Eu gostava de assistir aos julgamentos. Sempre que uma alma era condenada ao Tártaro, era terrível. Elas gritavam de desespero. Passar a eternidade no Tártaro não é lá algo que se deseje muito.
Mas enfim... Após eu ter descoberto que Mary, na verdade, era Sally, tudo tornou-se mais obscuro. Raramente eu a via, e estava sempre no Bosque Gótico, vagando desorientada. Mas eu a entendia. Meu primeiro ano nos Asfódelos fora horrível, onde eu também vagava desorientado pelos Bosques e Florestas amaldiçoadas, sem saber o que "fazer".
Sentei-me, um dia, sob a copa de um eucalipto envelhecido. Sally estava cerca de seis metros adiante, "cuidando" de azaleias murxas, a feição inexpressiva. Levantei-me, então, e tentei falar. Mas quando tu és morto e estás há muito tempo nos Asfódelos, tua voz torna-se fraca, quase inaudível. Então, ao sair a primeira palavra xoxa, eu desisti.
Sally olhou-me assustada. Acho que a espantei, pois logo ela largou as flores e saiu, vagando tristonha, rumando a qualquer outro lugar sombrio daquele mundo.

Asfódelos II

Em todos os meus vinte e sete anos de pós-morte, nunca havia sequer pisado nos Asfódelos algo tão magistral como aquela moça. Seu espectro, que possuía curvas divinas, emanavam uma ofuscante luz encantadora, que quase fazia meus olhos mortos brilharem.
Embora morta, Mary - foi como eu a batizei - parecia extramente viva. Toda sua leveza contribuía para que eu finalmente sentisse que estar ali nos Asfódelos era bom, pelo menos enquanto eu a observava mover-se lentamente adentro das árvores mortas no Oeste do Campo.
Seus olhos, verdes, pareciam também vivos. Refulgiam tanto a cada olhar que pareciam feitos de luzes neon; seu olhar também era assustador, carregado de uma possível frustração passada. Mas, o que isso me importava agora? Afinal, ambos estávamos mortos.
Mas então foi quando percebi: Não era uma moça qualquer. Não era Mary. Não era apenas uma morta que chegara aos Asfódelos, igual acontece todos os dias em massa. Era ela. Era o meu amor.
Olhei-a, então, atônito, mais bobo que antes, pensando. Eu sabia, de fato, que um dia ela chegaria. Ela morreu, então, vinte sete anos após a morte, e como pôde ter chegado aos Asfódelos tão bela, talvez até mais bela do que quando viva?
Foi quando eu me dei conta que permanecia apaixonado irrevogavelmente por Sally. Foi quando eu me dei conta que o juramento "até que a morte nos separe" é pura mentira.


Clique aqui para ler "Asfódelos I".

Who's the judge?

I've been thinking, recently, about the world. About the people around me, about the ideas around my mind.
I've been thinking, recently, about what is right and what is wrong. Finally, I've been thinking: How have I been right?
How can I be falling in love with her without even talking to her so much? It's not normal, I really cannot understand.
How much will I pay for what I haven't done, for what I've never wanted? It's not fair.
So, WHO'S THE JUDGE OF THE WORLD, DAMN FUCK?
I just hope he knows what he's doing with us.

Soneto II

A imagem distorcida de minh'alma ainda refulge na escuridão
Bravos sonhos, perdidos! Perdidos estão meus anseios
Ainda que eu andasse na mais sombria terra, jamais sentiria um outro desejo
Sequer eu sinto outra coisa a não ser profunda insatisfação

Horrenda dança varre minhas aventuradas memórias
Oh, deus que cobre-nos com tua infinita bondade!
Ainda que eu jamais possa encontrar um resquício de glória
De minha antiga e pacata vida sentirei saudades

Nunca vi algo parecido, vós quereis aterrar-me vivo!
Oh, lamentais! Lamentais por minh'alma que vaga com sofreguidão
Correis para longe, asqueroso espírito
Correis para longe, espírito de indignação!

Gélida lufada de ar invade-me o pulmão
Tento fugir, mas ainda não tenho sequer motivação
Deito-me na quietude do mais arrepiante negrume
E logo vem-me à essência a sólida sensação, a sólida solidão...

Percebo através do mais distante astro que cintila onde meu pai descansa
Oh, figura que fulgura! Oh, figura tão cruel que me assusta
Ainda que em minha terra algo normal seja a fria vingança
As deusas do bosque que buscam por morte nunca estiveram mais astutas

Peço, ainda, pela vida do mais raro peixe do Mar Vermelho
Não deixeis que eu vá! Não deixeis-me partir!
Pois embora na escuridão eu só encontre desespero
É aqui, só aqui, onde eu consigo finalmente dormir.

- por Guilherme Espinosa, 26/05/10

Asfódelos

A sensação de que meus ossos queimavam a cada passo que eu dava era horrível. As rochas sulfurosas sob meus pés estalavam; no teto, as estalactites pendiam, pontiagudas, retinindo frias ao clima desesperador.
Eu nunca pararia - eu nunca poderia. Continuei caminhando, passeando por jardins enegrecidos e paisagem lúgubre. O horizonte estendia-se verticalmente, lançando uma luz crepuscular que me dava uma estranha sensação de nostalgia. Era triste, enquanto a multidão arrastava-se sem a menor motivação.
Meus olhos gotejavam sangue, minhas mãos estavam marcadas para sempre pelos riscos mortais que eu correra. Olhei para o lado, onde a densidade atmosférica era sufocante; à frente, via-se, bem distante, uma cachoeira, chamada de Ísis. Sua visão era inebriante, e todos nós rumávamos para que um dia pudéssemos alcançá-la. Sua cascata, que parecia um véu de noiva, caía resplandecente no fulgurante mármore que se erguia atrás de uma balaustrada imperial.
E meus olhos ainda brilhavam quando eu me lembrava da vida. Meus olhos ainda brilhavam, e logo gotejavam escarlate, ao me lembrar do amor que deixei para trás.

Soneto I

E tu que, na calada da noite, ainda choras
Assistes o mórbido sofrimento passar desimpedido
Visse teus filhos irem para sempre embora
Mas do silêncio mortal tu também és filho

Tu que gemes ao tentar desatar-se
Aroma funesto te invade o olfato
Correntes de fogo firmam teu mártir
Dor lancinante te atinge o tato

Lá fora apodrecem as mais belas flores
O que queres sentir, sutil desgraçado?
E naquela escura noite de horrores
Teu orgulho jaz agora despedaçado

Esqueças da vida; sensação perspicaz!
Teus sonhos estão mortos, tua esperança se foi
Mas se algo bom tua fé ainda lhe traz
Sou tua salvação, o Senhor dos Senhores.

- por Guilherme Espinosa, 24/05/2010

Desejo

Eu queria poder te ver novamente. Queria poder ter-lhe dito o que eu queria ter dito enquanto podia. Queria não ter desperdiçado cada minuto; queria ter tido noção do que aconteceria depois.
Eu queria, na verdade, poder controlar cada batida do meu coração. Poder escolher o que sentir, assim escolher nunca sofrer.
Queria poder te tocar novamente - ver você real na minha frente; queria poder ter coragem de dizer, queria poder parar um pouco de escrever, como se fosse uma terapia. A única forma de me tratar.
Queria poder sorrir ao sentir o vento soprar nos seus cabelos, fazendo-os balançar, enquanto passamos a tarde embaixo de uma árvore, felizes. Mas, como diz o velho ditado, querer não é poder.
Queria, então, poder parar de pensar em ti, a cada vez que deito-me para dormir; queria poder te abraçar e, finalmente, acreditar no final feliz. Queria poder dizer a todos que, não só achei o que eu sempre quis, mas sim que o tenho. Mas não, não posso.
Talvez um dia, quem sabe, eu consiga sorrir. Quem sabe, um dia, quando você perceber o quanto me faz feliz.

Cento e oitenta graus

Estive pensando durante o tempo que esperava na fila do dentista. Pensando, por exemplo, no que é proibido. Pensando em tudo aquilo que sua mãe, pai, tios e avôs lhe repreendem: "Nunca use drogas!", por exemplo. Estive pensando também naquilo que a sociedade repreende, o mal do mundo. Estive pensando no que nós mesmos repreendemos, no que as pessoas que estão ao nosso redor desgostam. Estive, novamente, pensando, nas placas de hospitais, por exemplo, É proibido fumar, e me veio até aquela música do Roberto Carlos na cabeça.
Então todas minhas mirabolantes ideias me levaram a uma inerte conclusão: O que é proibido, afinal? O que deve ser repreendido? Será que alguém deve repreender as coisas por você? Será que você é autoinsuficiente ao ponto de não poder olhar o mundo de acordo com o SEU ponto de vista, de acordo com o SEU ângulo? Não importa se sua melhor amiga vê aos noventa graus e seu pai aos quarenta e cinco. Você PODE enxergar pelo cento e oitenta, por que não?
Será que a incapacidade hoje é tão grande a esse ponto? Eu prefiro presumir que não.
Matar é proibido. A violência é que mais tem crescido ultimamente; o fruto sagrado era proibido, mas Eva, ainda assim, o comeu...
E tanta coisa hoje em dia é "proibida" e ninguém respeita, por que eu, logo eu, respeitaria?
Mas então, ouvi alguém chamar meu nome. Mas era só o dentista, estava na minha vez.

Vinte e três

Eu já estava deitado sobre aquela cama havia vinte e três horas ininterruptas. Não levantei uma vez sequer - quando sentia sede, já havia uma garrafa com água ao meu lado. Eu não tinha motivação para sentir o mínimo resquício de desejo em levantar e ver o sol raiar novamente. Nada mais fazia sentido.
Eu nunca imaginei que eu pudesse sentir essa sensação. Mórbida sensação, uma doença rápida demais para a compreensão de cientistas, que vai corroendo seu emocional em poucos minutos. E ali estava eu, agonizando morosamente junto ao desespero. O meu lento desespero.
Mas eu, talvez, fosse capaz de suportar. Afinal, o amor era a única coisa realmente viva que corria dentro de mim. E vinte e três horas não era exatamente nada, comparado ao que eu esperaria por ela.


Há luz nas trevas

Ele estava sentado, sozinho, no meio da rua, em plena madrugada. O negrume não era encorajador, embora o luar enviasse um feixe de luz aos olhos dele. John levantou-se, ainda tonto, e seguiu em frente. Tudo ainda girava ao seu redor - ainda via o que não existia, ainda pensava no passado.
Como vou fazer isso parar?, pensou o bêbado. Apesar das incontáveis garrafas de álcool, alguma parte de seu cérebro continuava sóbria, bem real. Ele sabia que não lhe restava muito tempo de vida, sabia que em pouco tempo deixaria tudo e todos para trás. E logo John, que tinha ótimos amigos e uma família perfeita.
"Você vai me perdoar, Kate", murmurou ele para a escuridão. "Mas... eu não vou voltar mais.", concluiu e caiu novamente sobre o asfalto. Sua testa bateu diretamente no sólido, que imediatamente começou a sangrar. John tentou levantar-se, cambaleando, mas sua visão estava turva.
À frente, vinha um carro. O farol estava ligado e incrivelmente forte. A luz ofuscante cegou John por um instante, mas logo parou, e ele descobriu que não se tratava de um automóvel.
"Ora, ora, John", disse o anjo. John olhou-o, assustado. É só mais uma alucinação, pensou ele. Mas o anjo era muito real para isso.
"Quem é você?", perguntou o bêbado. "Sai - hic - daqui."
"Sinto muito, John, mas não posso ir sem antes cumprir minha missão." contou o anjo. Era alto, cerca de dois metros. Suas asas alvíssimas batiam levemente contra o vento; seus cabelos eram pretos e lisos, até os ombros; seus olhos refulgiam, mesmo na escuridão.
"Que... hic, missão?"
"Ora, John. Será que não percebeu o quanto Deus tem lhe salvado?"
John olhou-o enviesado. O efeito do álcool passava repentinamente. Mas John continuava a achar que era uma alucinação - não acreditava em Deus, tampouco em anjos reluzentes que apareciam no meio da noite para cumprir missões.
"Será que ainda não percebeu que, se fosse pelos acasos da sua vida, já deveria ter partido há tempo? John, não é esse o plano que Deus tem pra você. Veja seus filhos, veja a excelente esposa que Deus lhe deu! Será que ela merece isso? Um marido bêbado, à beira da morte?" indagou o anjo, sua voz de veludo ressoando na quietude.
"Você é de mentira..."
"Não sou, não, John. Eu fui enviado até aqui, no meio da noite, neste frio, para lhe trazer o conhecimento. Deus está lhe dando mais uma chance, John Albert Windsor Tasting. Reconheça-a."
John olhava atônito para o anjo. Era inacreditável; mal conseguia compreender metade das palavras que o anjo dizia. Era, obviamente, uma mentira.
"Pense, John. Se está vivo até hoje, não é por pura sorte."
A luz tornou-se ofuscante novamente, cegando John, e quando parou, era só escuridão novamente. E John continuou ali, sentado, confuso, sem saber o que pensar.